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O que a Bíblia diz sobre predestinação e liberdade de escolha?

livre arbítrio

A Bíblia afirma claramente que Deus “não faz acepção de pessoas”.

Wilson Borba*
Pastor e doutor em teologia

O Senhor e Salvador Jesus Cristo fez com que o povo deixasse as tradições para se voltar às Escrituras – à Lei e os Profetas (João 7:16; Mateus 4:4, 10; 5:18; 15:1-9; Lucas 24:27, 44). Seus apóstolos assim também procederam (Atos 3:24; 24:14; 26:27; Romanos 3:21; 2Timóteo 3:16). Eles pregaram o evangelho bíblico e eterno, pois qualquer outro é “anátema” (Apocalipse 14:6; Gálatas 1:8, 9). Mas falsos ensinos penetraram no cristianismo a partir da Patrística, período após a morte dos apóstolos, cujos ensinadores têm sido denominados “Pais da Igreja”. Esses teólogos, e também os medievais, “olhavam geralmente para a filosofia e para a literatura grega como precursores, preparadores e pronunciadores da teologia cristã”.1

Assim, a teologia bíblica foi negligenciada. A propósito, “o grande erro da Igreja Católica reside no fato de que a Bíblia é interpretada à luz das opiniões dos ‘pais’”.2 Já os reformadores do século XVI adotaram a Sola Scriptura, tomando “a Sagrada Escritura como fonte única para julgar a ortodoxia da fé”.3 Logo, “enquanto a igreja medieval se baseava nos escritos dos “pais da igreja e dos concílios”, os reformadores adotaram os escritos dos “apóstolos e profetas”.4

Lutero “atacava a incredulidade especulativa dos escolásticos, e opunha-se à filosofia e teologia que durante tanto tempo mantiveram sobre o povo a influência dominante.”5 Mas a despeito da Reforma Protestante trazer o povo de volta à Bíblia, erros filosóficos da Patrística influenciaram reformadores como Lutero e Calvino. Por exemplo, Agostinho de Hipona (354 d.C.-430 d.C.), por meio de especulação filosófica, apegara-se ao conceito grego da atemporalidade do ser mantido por Parmênides (50-470 a.C.), e Platão (427-347 a.C.).6

Os gregos identificavam “a eternidade com a atemporalidade”7, e concebiam o ser verdadeiro “como algo que existe em um eterno presente, sem passado, e sem futuro, sem ontem e sem amanhã”.8 Para aqueles filósofos, “a verdadeira realidade é aquela que existe toda junta, sem sucessão nem mudança”.9 Agostinho, baseado na filosofia grega, afirmou em Confissões que a eternidade é “imutável”, “imóvel”, “nada passa, pois o todo é plenamente presente”.10 Sobre os anos de Deus, Agostinho também escreveu: “Teus anos permanecem juntos, são imóveis… Teus anos são um dia, e o Teu dia não segue em repetição, é sempre hoje, pois o Teu hoje não dá lugar para o amanhã, nem substitui o ontem. O Teu hoje é Eternidade.”11

Além do tempo

As Escrituras, porém, afirmam a temporalidade de Deus, declarando que antes da criação da Terra havia tempo, dias e anos (Jó 36:26; Daniel 7:9, 13; Miqueias 5:2; Tito 1:2; Hebreus 1:10-12). “A temporalidade de Deus significa, que em sua eternidade, a vida e a ação de Deus acontece na ordem da sucessão de passado, presente e futuro”.12 Aqueles que se apegam à visão filosófica grega da atemporalidade torcem 2Pedro 3:8, pois o apóstolo Pedro não ensina esse falso conceito. O apóstolo simplesmente afirma o mesmo que Eliú. O número dos anos de Deus “não se pode calcular” (Jó 36:26), isto é, o “caráter infindável do tempo de Deus”.13 Deus vive no tempo como nós, seres criados. A diferença é que enquanto somos mortais e passageiros, Deus sempre foi e sempre será eterno e imortal (1Timóteo 1:17).

A propósito, Canale fez uma investigação exaustiva do paralelismo de Êxodo 3:14, 15, em que o “Ser de Deus aparece em extensão temporal nos três modos de tempo (passado, presente, e futuro)”.14 Ele afirma corretamente: “Um Deus atemporal é um Deus impotente, que não pode agir historicamente dentro do movimento da história”.15 Em acordo, Gulley lembra que Deus é um ser relacional (1João 4:8), e que “um Deus relacional não é um Deus atemporal”.16

Pelo conceito de que a divindade habitaria em eterna atemporalidade, Agostinho influenciou a teologia romana, pois, “de acordo com a teologia católica romana, o ser de Deus é atemporal e não espacial (eterno e espiritual)”.17Agostinho também preparou o caminho para a doutrina protestante de que por um decreto na eternidade atemporal e imutável, Deus justificou e predestinou de modo eterno e imutável um indivíduo para a salvação.

A propósito, “Lutero entendeu a realidade de Deus seguindo a filosofia grega. Deus não vive ou atua na sequência de passado, presente e futuro”, mas em um “momento” atemporal “instantâneo”.18  Lutero cria firmemente na ideia da predestinação ao ponto de falar da justificação como um evento terminado.19E Calvino ensinou predestinação dupla, para a salvação ou para perdição, afirmando que Deus “designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer que se salvem, e também aqueles que quer que se percam”.20

Decisões e consequências

Para John Wesley, esta doutrina destrói todos os atributos de Deus, pois “subverte a sua justiça, a misericórdia e a verdade; sim, ela representa o mais santo Deus como pior do que o demônio, mais falso, mais cruel e mais injusto”.21 De fato, esta visão catastrófica de determinismo divino “insiste em que Deus é a causa final que determina as ações humanas”.22 Ela destrói o livre arbítrio e a responsabilidade humana. Enquanto muitos rejeitam um Deus assim, multidões se entregam a uma fatal ilusão presunçosa de “total segurança da salvação final. A pessoa predestinada pelo decreto soberano de Deus não podia perder-se”.23

A Bíblia, porém, afirma claramente que Deus “não faz acepção de pessoas” (Atos 10:34). Ele deseja que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”, inclusive o “principal dos pecadores” (1Timóteo 2:4; 1:15). Ele “não quer que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pedro 3:9). Cristo, em sacrifício voluntário, “a si mesmo se deu em resgate por todos” (1Timóteo 2:6), provando “a morte por todo homem” (Hebreus 2:9). Com certeza Ele “pode salvar totalmente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7:25). Por isso, comissionou Seus discípulos a irem “por todo o mundo” pregar “o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15).

Liberdade de escolha

Ao estudar predestinação, deve-se incluir a presciência divina, a providência do evangelho eterno, o livre arbítrio humano, e as consequências de suas escolhas. Presciência, ou conhecimento antecipado, não é o mesmo que predestinação ou predeterminismo (Isaías 46:9, 10; 44:6-8; Atos 2:23; Romanos 11:2). No sentido bíblico, a predestinação se refere especificamente ao plano divino da salvação estabelecido antes da fundação do mundo24 (1Pedro 1:18-20; Romanos 16:25, 26; Apocalipse 14:6). “Deus escolhe os eleitos em sua providência, não em sua predestinação”25 (Efésios 1:11, 12), pois predestinou apenas a missão de Cristo, não causando os acontecimentos conhecidos em Sua presciência.26 Segundo a doutrina bíblica do santuário, “Deus não realiza a salvação de indivíduos na eternidade antes da fundação do mundo, mas “através da mediação histórica de Cristo”27 (Hebreus 8, 9).

Ele não força a vontade, mas permite nossas escolhas (Salmo 37:5; Provérbios 23:26; Isaías 1:19; 55:1; Apocalipse 3:20). A Bíblia declara várias vezes que foi Faraó que endureceu seu próprio coração (Êxodo 7:22; 8:15, 19; 9:35), o que também pagãos reconheceram (1Samuel 6:6). Mas por que a Bíblia diz que Deus endureceu o coração de Faraó, enquanto diz que ele mesmo se endureceu, não obstante as provas de que Deus realmente falara a ele?  (Êxodo 9:12; 10:1, 20, 27). “Deus deixa que os que se rebelam colham as consequências de suas ações. Deus poderia haver intervido, de modo que as consequências nunca seriam manifestadas, mas não fez. Nesse sentido, o Senhor era responsável por elas”.28

Assim foi o caso de Caim, Balaão, Esaú, Saul, Judas. O fogo eterno foi preparado para o diabo e seus anjos (Mateus 25:41). Infelizmente, seres humanos serão destruídos, porque assim como os habitantes de Sodoma, escolhem “viver impiamente” (2Pedro 2:6, Judas 7; Apocalipse 21:8). Algumas citações: “Não é que Deus mande um decreto para que o homem não se salve. Mas o homem resiste a princípio a um movimento do Espírito de Deus e, havendo uma vez resistido, é menos difícil assim fazer pela segunda vez, menos a terceira, e muito menos a quarta. Então vem a colheita a ser ceifada, da semente de incredulidade e resistência”.29 “Sob a influência do Espírito de Deus, o homem é deixado livre para escolher a quem há de servir”.30 “Deus elegeu um caráter de acordo com Sua lei, e qualquer que atinja a norma que Ele exige, terá entrada no reino de glória”.31 “Não há eleição senão a própria, pela qual alguém possa perecer”.32 “As providências tomadas para a redenção são franqueadas a todos; os resultados da redenção serão desfrutados por aqueles que satisfizeram as condições”.33

Conclui-se que o ensino da predestinação divina de seres humanos para a salvação, ou para a perdição, é falso e está em frontal oposição às Escrituras Sagradas. “Cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Romanos 14:12)”. Portanto, “temos liberdade para escolher ser polidos ou permanecer sem polimento”.34 “Assim, pois, como diz o Espírito Santo: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hebreus 3:7,8). “Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Apocalipse 2:10), pois “Aquele, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mateus 24:13).

Referências:

1E. E. Zinke, Abordagens da teologia e dos estudos bíblicos, Brasília: Divisão Sul-Americana, 1979, p. 5.

2Ellen G. White, Fundamentos da educação cristã, 1ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 308.

3Josef Lenzenweger; Karl Amon Stockmeier; Rudolf Zinnhobler, Historia de la iglesia católica,  Barcelona: Editorial Herder, 1989, p. 374.

4Ellen G. White, O grande conflito, 43ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 208.

5Ibidem, p. 126.

6Raúl Kerbs, El problema de la identidade bíblica del cristianismo, 1ª ed. Libertador San Martin, Argentina: Universidad Adventista del Plata, 2014, p. 79, 102, 105, 106.

7Ibidem, p. 655.

8Ibidem.

9Ibidem.

10Agostinho, Confissões, 1ª ed. Jandira, SP: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2019, capítulo XI, p. 221.

11Ibidem, capítulo XIII, p. 222.

12Fernando Canale, Princípios elementares da teologia cristã, 1ª ed. Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2018, p. 80. A seguir: Canale, Princípios elementares da teologia cristã.

13Oscar Culmann, Christ and time: the primitive christian conception of time and history. Philadelphia: Westminster Press, 1964, p. 69.

14Fernando Luis Canale, Toward a Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presuppositions, Tese PhD, Andrews University, (1983), p. 362.

15Canale, Princípios elementares da teologia cristã, p. 81.

16Norman R. Gulley, Sistematic theology God as Trinity, Berrien Springs, MI: Andrews University, 2011, v. II, p. 177.

17Fernando Canale, ¿Adventismo secular?, 1ª ed. Lima: Universidad Peruana Unión, 2012, p. 38.

18Ibidem, p. 39.

19Raoul Dederen, ed. Tratado de teología adventista, 1ª ed. Buenos Aires: Casa Editora Sul-Americana, 2009, p. 346. A seguir: Tratado de teologia adventista.

20Agostinho, Livro III, capítulo 21, p. 393.

21John Wesley, Coletânea da teologia de joão wesley, compilado por Robert W. Burtner e Robert E. Chiles, 2ª ed., Rio de Janeiro: Instituto Metodista Bennett, 1995, p. 46.

22Norman Geisler, Enciclopédia de apologética, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 253.

23Tratado de teología adventista, p. 346.

24Canale, Princípios elementares da teologia cristã, p. 146.

25Ibidem, p. 154.

26Ibidem, p. 151.

27Ibidem, p. 155.

28George R. Knight, Por la ruta de romanos. Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 2003, p. 237.

29Ellen G. White, Testemunhos para a igreja, 1ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, vol. 5, p. 120.

30________, O Desejado de Todas as Nações, 22ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 466.

31_______, Patriarcas e profetas, 16ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 207.

32Ibidem.

33Ibidem, p. 208.

34Ellen G. White, O cuidado de Deus: Meditação Matinal. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1995, p. 130.

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