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A FORÇA DA RESILIÊNCIA

É em meio às dificuldades da vida que temos a oportunidade de desenvolver a resiliência.

Dr. Alberto Nery

Seja em livros, cursos, frases motivacionais, redes sociais, reportagens na televisão ou internet, ou até mesmo em camisetas, a palavra resiliência tem se tornado cada vez mais comum e conhecida das pessoas em geral. Em tem­pos de grandes dificuldades, como os que temos vivido em função da pandemia mundial que nos assola, o conceito de resiliência tem sido divulgado como nunca. […] Ao ser empregada no campo das ciências huma­nas e da saúde, [a palavra] resiliência passa a ser entendida como o processo por meio do qual a pessoa não apenas enfrenta e supera as adver­sidades, mas sai fortalecida e transformada.

Essa capacidade humana é considerada uma “inexplicável força de superação e sobrevivência”, conforme sublinhou Esdras Vascon­cellos (“Stress, coping, burnout, resiliência: troncos da mesma raiz”, em A Psicologia Social e a Questão do Hífen [Blucher, 2017]). Ela emerge quando a pessoa enfrenta situações de estresse extremo e suas condições de suporte interno e externo já existentes são sufi­cientes para lidar com a situação, exigindo da pessoa uma reação extraordinária, até então inesperada. Em boa parte das vezes, uma pessoa resiliente não toma consciência da sua própria resiliência até que seja colocada à prova.

O conceito se apresenta de maneira original como característica individual. Porém, é importante lembrar que não se aplica apenas aos indivíduos. Famílias, organizações, povos, grupos sociais e religiosos podem ser resilientes de maneira coletiva, como carac­terística grupal. Em um contexto mais amplo, na história da humanidade, os grandes resilientes foram justamente homens, mulheres, famílias, grupos e povos que não somente superaram suas próprias dificul­dades, mas que por meio dessa atitude acabaram por ajudar a trans­formar a sociedade em que viviam e, dessa forma, moldar o próprio curso da história.

CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA

Na psicologia, o psiquiatra e neurologista Viktor Emil Frankl (1905- 1997) foi quem ofereceu uma das maiores contribuições sobre a capacidade humana de suportar e superar o sofrimento. Nascido em Viena e descendente de judeus, Frankl iniciou seus estudos em Psicologia através do contato com as ideias de Sigmund Freud e Alfred Adler. Posteriormente, seguiu seu próprio caminho e criou a Logoterapia, também conhecida como Psicologia do Sentido da Vida. Segundo a proposta de Frankl, o ser humano sempre pode conferir um sentido à sua existência e, ao fazer isso, tende a levar uma vida mais equilibrada e a superar as adversidades.

Em 1942, juntamente com a esposa e os pais, Frankl foi preso pelos nazistas e mandado para o campo de Theresienstadt, ao norte de Praga. A partir desse momento, sentiu-se desafiado a colocar em prática suas tenras ideias sobre a natureza humana, ao iniciar uma jornada que duraria cerca de três anos, passando por quatro campos de concentração, entre eles o temido campo de Auschwitz-Birkenau. O relato dessa experiência pode ser encontrado no clás­sico Em Busca de Sentido (Sinodal e Vozes, 2006).

A Logoterapia torna-se uma ferramenta eficaz na compreensão e no desenvolvimento da resili­ência na medida em que parte da premissa fun­damental de que o sofrimento faz parte da vida e é algo inevitável. Para Frankl, ele está inserido no que chamou de tríade trágica da existência humana: dor, culpa e morte. “Não há um único ser humano que possa dizer que jamais sofreu, que jamais falhou e que não morrerá” (Um Sen­tido Para a Vida [Ideias & Letras, 2005], p. 94).

A inevitabilidade do sofrimento, porém, não invalida a possibilidade de um sentido para a vida; justamente ao contrário: “É possível tirar sentido até do sofrimento, embora com esforço; isto significa, portanto, que o sentido potencial da vida é incondicional” (A Presença Ignorada de Deus, 3a ed. [Vozes, 1993], p. 104). A capacidade humana de encontrar um sig­nificado apesar do sofrimento é o fator determi­nante na superação das adversidades que a vida nos apresenta. Antes ainda da criação do conceito de resiliência, na perspectiva da Logoterapia, o homem é dotado do que Frankl vai chamar de “poder opositor do espírito humano” (Logotera­pia e Análise Existencial [Forense Universitária, 2012], p. 60).

O indivíduo que sofre e supera o sofrimento é chamado de Homo Patiens. É “o homem em sofrimento que, em virtude da sua humanidade, mostra-se capaz de erguer-se sobre sua dor e de tomar uma atitude significativa em relação a ela”, escreveu Viktor Frankl (A Vontade de Sentido [Paulus, 2011], p. 96). Por meio do “poder oposi­tor do espírito humano”, o Homo Patiens é capaz de saber sofrer e transformar seu sofrimento em uma conquista.

A grande chave para a mudança de perspectiva, que permite ao indivíduo essa transformação, é a descoberta de um sentido para a vida, mesmo em meio às dificuldades. “O sofrimento, de certo modo, deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício” (Em Busca de Sentido, p. 137). A inca­pacidade de encontrar um sentido leva a pessoa ao vazio existencial e, consequentemente, à con­dição de desespero, que seria justamente a expe­riência do sofrimento sem um sentido.

Vale lembrar que essa possibilidade humana não significa que devamos buscar o sofrimento, ou que uma vida com sentido seja possível somente em meio ao sofrimento: “o sentido é possível, apesar do sofrimento, desde que seja inevitável passar por ele, e impossível eliminar sua causa”, uma vez que buscar “um sofrimento desnecessário seria masoquismo e não heroísmo” (A Presença Ignorada de Deus, p. 104).

PERSONAGENS BÍBLICOS RESILIENTES

O exemplo de Jesus no Getsêmani ilustra bem esse ponto. Embora tornar-Se homem e salvar a humanidade fosse uma escolha, não havia prazer no sofrimento envolvido. “Meu Pai, se é possível, que passe de Mim este cálice!” foi o clamor de Cristo (Mt 26:39a). No entanto, o significado daquele ato e o sentido daquela entrega O for­taleceram para suportar aquele momento com dignidade: “Contudo, não seja como Eu quero, e sim como Tu queres” (v. 39b).

Na Bíblia encontramos diversos relatos de como seus persona­gens foram resilientes em diferentes situações que envolviam o sofrimento e a necessidade de lidar com as adversidades. De Moisés liderando um povo no deserto por 40 anos até os apóstolos em meio às perseguições e dificuldades que a obra missionária lhes apre­sentava, podemos encontrar uma galeria de exemplos dessa capa­cidade humana.

No entanto, nenhum deles se compara a Jó, alguém que perdeu tudo, desde sua integridade física, passando por seus entes queri­dos e bens materiais. Ele provou o gosto amargo do sofrimento ao ponto de sentir-se desamparado até pelo próprio Deus, porém per­maneceu firme. Foi provado e abalado pelas provas, mas as superou.

O diálogo final entre Deus e Jó (Jó 38 a 42) é emblemático no que diz respeito à maneira pela qual o ser humano pode encarar os sofri­mentos da vida. Ao clamar por uma resposta, uma explicação, Jó recebeu de Deus outras perguntas sobre a ordem e as leis naturais do Universo, as quais ele mesmo não conseguia responder. A res­posta de Deus através de outras perguntas é clara: você não é capaz de compreender nem mesmo as obras da Minha criação, como pode querer compreender Meus desígnios? A fé na soberania divina, o esforço em enxergar a situação pela qual passava em um contexto mais amplo, sob a ótica do Todo-Poderoso, foi o que permitiu a Jó encontrar um sentido em meio ao seu sofrimento, embora não tenha recebido respostas objetivas nem explicações para suas questões.

FATORES DE FORTALECIMENTO

Os fatores apresentados a seguir, com base no relato de Frankl no livro Em Busca de Sentido sobre sua experiência nos campos de concentra­ção, constituem atitudes úteis que podem ajudar aqueles que desejam desenvolver mais resiliência:

  • 1) Humildade. Quando nos colocamos em uma posição de superioridade em relação aos outros, a superação das adversidades acaba sendo mais difí­cil, pois passamos a pensar que “não merecemos” estar naquela condição de sofrimento, e isso torna o fardo ainda maior. Frankl parte do princípio de que o sofrimento faz parte da vida e ninguém escapa dele. A partir dessa lógica, a pergunta “Por que eu?” perde o sentido e passa a ser substituída por outro questionamento: “Por que não eu?” Esta simples inversão no olhar é capaz de fortalecer a pessoa no enfrentamento dos momentos difíceis da vida. Em momento nenhum seu relato de sobre­vivência é o de um herói forte e valente que supe­rou bravamente todas as dificuldades. Ao contrário, ele reconhece sua fraqueza até mesmo para ajudar seus companheiros. Segundo Frankl, “os melhores não voltaram” (p. 18) dos campos de concentração.
  • 2) Aceitação. Frankl escolheu a postura de não reclamar do destino que lhe foi imposto, mas procurar agir de acordo com as possibilidades que cada situação lhe apresentava. Saiu de Viena como jovem e promissor médico e tornou-se um escravo trabalhando na maior parte do tempo em condições sub-humanas. No entanto, na medida em que suas forças permitiam, procurava fazer seu melhor até nas atividades mais extenuantes. De maneira geral, a atitude de reclamação tende a intensificar nossas dificuldades. Frankl procurava empatia e compaixão ao não julgar as atitudes extremas dos outros. Ao descrever as atitudes das pessoas nos campos de concentração, um verdadeiro laboratório de celebração da insanidade humana, Frankl conclui: “Numa situação anormal, uma reação anormal simplesmente é a conduta normal” (p. 34). Em outras palavras, quando não somos capazes de compreender que, em meio às provações, nem sempre agimos como gostaríamos ou deveríamos, acabamos acarretando um sofrimento adicional, que é a culpa por sofrer, o que torna a superação ainda mais difícil.
  • 3) Gratidão. O exercício da gratidão nas pequenas conquistas era um dos combustíveis preciosos no processo de superação. Vivendo em uma condição de miséria total, Frankl descreveu como se alegrava, por exemplo, quando recebia uma porção de sopa um pouco mais caprichada (p. 66), ou até mesmo quando ficava doente e assim podia passar o dia inteiro nos barracões, “devaneando”, esperando pela ração reduzida de pão, até feliz, apesar de tudo (p. 67). As pequenas alegrias têm um papel importante na superação do sofrimento, na medida em que elas nos ajudam a antever as coisas boas que podem estar pela frente, caso superemos a provação na qual estamos imersos. Como um pequeno raio de sol que aparece por trás das nuvens no meio de uma tempestade, as pequenas alegrias são o prenúncio de que a tormenta irá passar um dia.
  • 4) Cultivar a liberdade interior. Sempre que possível, Frankl tentava distanciar-se da massa e ficar sozinho com seus pensamentos. Refugiava-se nas boas lembranças do passado e procurava contemplar a natureza sempre que possível. Nessas ocasiões, concluiu que “inerente ao sofrimento há uma conquista, que é uma conquista interior. A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe até o último suspiro configurar sua vida de modo que tenha sentido” (p. 99). O conceito de liberdade interior tem que ver com a possibilidade que cada pessoa tem de decidir como reagir. Nenhum ser humano é livre das circunstâncias, sejam elas históricas, genéticas ou sociais, mas todo ser é livre para escolher como reagir e se posicionar diante das circunstâncias.
  • 5) Senso de humor. Não eram poucas as situações nas quais o bom humor ajudava a tornar a vida suportável. Os enormes contras­tes presentes na vida de um prisioneiro ajudava a despertar o que Frankl chama de “vontade de humor”, “uma tentativa de enxergar o mundo numa perspectiva engraçada”, que se consti­tui um “truque útil para a arte de viver” (p. 62). O humor aparecia em situações potencialmente trágicas. Frankl relembra como riram em certa ocasião em que foram levados para o banho, abri­ram os chuveiros e perceberam que deles saía água em vez de gás, ou em outro momento no qual ficaram felizes porque um bombardeio aliado os impediu de continuar trabalhando. Procurar enxergar as coisas em uma perspectiva cômica é um dos esforços mais eficientes na superação das adversidades. Costumo dizer aos meus pacientes que muitas das situações que nos fazem chorar hoje serão motivo de risos no futuro. O senso de humor é uma estratégia eficiente dos resilientes.
  • 6) Força do amor. Uma das razões fortes o sufi­ciente para levar alguém ao processo de supera­ção é o amor por outro ser. Amar, estar presente ou poder fazer algo por alguém a quem amamos reveste-nos de uma disposição incomum e pro­move o fortalecimento emocional necessário para seguirmos em frente mesmo em meio às maio­res dificuldades. Frankl relata como o amor pela esposa (que acabou falecendo no campo de Bergen-Belsen), associado ao desejo de reencontrá-la, era uma das suas maiores fontes de motivação para suportar as mais duras provas e lutar para sobre­viver acima de tudo
  • 7) Fé. O interesse religioso era algo comum entre os prisioneiros. Em diversas ocasiões improvisa­vam cultos no canto de um barracão ou até mesmo nos vagões de gado escuros nos quais eram levados ao trabalho (p. 51). As orações eram constantes, e o próprio Frankl relata como, sempre que possí­vel, lia os salmos e fazia suas orações. A experi­ência religiosa pode ser um dos grandes fatores de proteção, na medida em que é fonte de esperança e suporte em meio às dificuldades.

CONCLUSÃO

Esses fatores de superação e resiliência em uma situação tão extrema servem de guia e exemplo de atitudes úteis no desenvolvimento pessoal da resiliência. Nascemos com o potencial para ser resilientes, mas isso não significa que sere­mos. É em meio às dificuldades da vida que temos a oportunidade de desenvolver essa capacidade tão necessária para nossa sobrevivência, equilí­brio e bem-estar físico, mental e espiritual, prin­cipalmente em dias difíceis como os que estamos vivendo.

Em sua carta aos Romanos, o apóstolo Paulo descreveu um processo através do qual as tribula­ções humanas são convertidas em fontes de espe­rança. Ele mesmo experimentou isso em sua vida: “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação pro­duz perseverança, a perseverança produz expe­riência e a experiência produz esperança. Ora, a esperança não nos deixa decepcionados, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (Romanos 5:3-5).

Ao comentar esse texto em Carta aos Roma­nos (Fonte Editorial, 2009, p. 245), o teólogo suíço Karl Barth afirmou que “a perspectiva espiritual muda o sinal matemático inscrito na frente da nossa tribulação. O que parece ser mero sofri­mento humano transforma-se em obra de Deus. Os empecilhos da vida transformam-se em degraus para a vitória; o derribar dá lugar à nova edifica­ção; a desilusão e o revés aguçam a esperança e o anseio pela volta do Senhor”.

Como evidenciam os exemplos de Paulo, Jó e outros tantos personagens das Escrituras, a fé pode ser um dos fatores de proteção importantes no processo de superação e na expressão da resi­liência humana. Em seu livro Em Busca de Sen­tido, Frankl a menciona ao lado de outras atitudes como um dos elementos que o ajudaram (e tam­bém a outros companheiros de provações) a supe­rar as adversidades em meio à sua via crucis. De alguma forma, podemos desenvolver a resiliência.

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ALBERTO NERY é bacharel em teologia, doutor em Psicologia pela USP e criador do Instituto de Psicologia e Logoterapia, sediado em São Paulo. Artigo publicado na Revista Adventista, abril de 2021.

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