Pornografia: o que essa indústria não te contou
Michelson Borges
Os prejuízos físicos, psicológicos, sociais e espirituais por trás da ilusão do prazer. O acesso a conteúdo pornográfico cresceu 600% com a pandemia, segundo pesquisa da Netskope.
(Foto: Shutterstock)
Ela não é como outras drogas. O usuário não precisa sair de casa nem abrir a carteira para adquiri-la; basta um clique na tela e lá está, pronta para uso. Embora não seja uma substância narcótica, estudos comprovam que a pornografia tem efeitos semelhantes no cérebro humano, e igual potencial para causar dependência. Ainda assim, a sociedade parece ignorar que ela seja um problema de saúde pública e tratar o seu consumo como um comportamento tolerável e inofensivo.
Transportando a memória a alguns anos atrás, “tudo o que se relaciona à devassidão sexual” – que é o conceito primário de pornografia – era apresentado em imagens, vídeos e filmes reservados, de difícil acesso. Hoje, esse tipo de conteúdo está explícito em músicas, clipes, comerciais e filmes considerados adequados até para crianças.
O que não surpreende, nisso, é que a indústria pornográfica é uma das mais lucrativas, movimentando bilhões de dólares por ano e superando grandes impérios do entretenimento no mundo, como mostram dados do site Yahoo Finance.
Quanto à audiência, o seu aumento acompanha fonômenos como a crescente acessibilidade à tecnologia e à internet, e até mesmo a pandemia. Uma pesquisa divulgada pela empresa estadunidense de segurança Netskope revela que o consumo de conteúdo pornográfico cresceu 600% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano anterior; esse é um reflexo da migração em massa dos trabalhadores e estudantes para o sistema home office, no cenário pandêmico.
Exposição precoce
E no meio desse público estão, sim, as crianças. Estudiosos reconhecem que elas são expostas à pornografia cada vez mais precocemente. Hoje, a média etária em que se tem o primeiro contato com conteúdo pornográfico é aos nove anos. Essa também é a idade aproximada em que as crianças costumam receber de presente o seu primeiro celular. Isso não é uma coincidência.
Segundo a psicopedagoga Glaucia Korkischko, diretora do Ministério da Criança e do Adolescente da Igreja Adventista do Sétimo Dia na América do Sul, esse contato precoce resulta da falta de acompanhamento por parte dos pais e da falta de conversas instrutivas sobre o tema. “Seja em família, na escola ou na igreja, crianças gostam de brincar e ter atenção. Se tiverem boas atividades e um bom papo, não haverá interesse por perversões no campo sexual”. Por outro lado, os prejuízos desse tipo de conteúdo na mente infantil são imensos. “O maior deles é a distorção da realidade. A exposição à pornografia promove a erotização, e não a educação, e estimula performances abusadoras”, alerta Glaucia.
Para a psicopedagoga, a educação sexual é um tema bastante amplo, que envolve toda a identidade da criança, e não apenas uma parte dela, como os órgãos sexuais. “Essa instrução deve falar mais sobre quem a criança é, como Deus a formou e como ela pode se proteger do que sobre sexo. Uma educação sexual de qualidade entre pais e filhos, professores e alunos, deixa um caminho aberto para o diálogo e forma adultos íntegros e bem-sucedidos. E sobre as faixas etárias, há, sim, indicações sobre o que é apropriado ou não falar em cada idade. Mas a regra básica é responder às curiosidades da fase, não aprofundando temas que a criança ainda não tem necessidade de saber. E pra ser assertivo, deve-se avaliar também o contexto em que a criança está inserida”, pontua.
A ilusão da pornografia
Em seu artigo sobre o tema, publicado na edição de 2015 da revista Quebrando o Silêncio, o jornalista Michelson Borges chama a atenção para outro viés deste assunto: as sequelas físicas e psicológicas sofridas por quem atua na indústria pornográfica. Ele cita depoimentos de ex-atrizes pornô sobre o abuso, a humilhação e a violência que sofrem nas gravações, as doenças sexualmente transmissíveis que lhes acometem, além das mentiras que são obrigadas a contar com sua atuação. Muitas delas acabam recorrendo ao uso de drogas e álcool para conseguir realizar as filmagens, o que as leva ao vício e todas as suas consequências. Livres dessa realidade, hoje algumas dessas atrizes militam contra a indústria pornográfica, expondo suas mazelas e apelando à população a que não apoie esse mercado com sua audiência.
Uma questão espiritual
De acordo com o teólogo Rafael Rossi, “para os cristãos, o padrão de conduta sexual está estabelecido na Bíblia, e pode ser resumido em pureza de vida (1 Tessalonicenses 4:3; 1 Coríntios 6:13). O sexo é um presente de Deus para os seres humanos. Portanto, deve ser compreendido como algo especial e que exalta a dignidade humana. Por outro lado, a pornografia banaliza e vulgariza o sexo, além de criar uma ilusão que destrói as bases morais e espirituais. Os que consomem pornografia entram numa prisão pensando estarem livres”.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia posiciona-se, essencialmente, contra toda forma de abuso, violência ou comportamento que gere prejuízo físico, psicológico ou espiritual. É neste sentido que atua a campanha Quebrando o Silêncio, que a cada ano traz à tona uma temática diferente, alertando e instruindo a sociedade sobre esses problemas, e contribuindo com soluções. A edição de 2015 abordou, sobretudo, o tema da pornografia. Os materiais podem ser encontrados no site oficial da campanha.
Um vício como qualquer outro
A psicóloga e fisioterapeuta Eliane Melo costuma receber em seu perfil no Instagram depoimentos de internautas que sofrem os prejuízos do vício em pornografia. Faz parte do seu trabalho ajudar essas pessoas a solucionarem este e outros problemas relacionados à sexualidade sob a luz da Bíblia e da ciência. Em entrevista para esta reportagem, ela expressa as percepções que a sua experiência com esse público lhe trouxe:
Quais são as principais queixas apresentadas e que se relacionam com o vício em pornografia?
Existem alguns cenários. Considerando o público cristão, primeiro temos pessoas solteiras que usam a pornografia como recurso para dissipar a energia sexual. Elas têm a sensação de que, quando se casarem, irão canalizar naturalmente essa energia para a relação sexual com seus cônjuges. Isso é um engano, porque os prejuízos do consumo de pornografia são levados para dentro do casamento.
Aí vem o segundo cenário: pessoas casadas, que, geralmente, consomem pornografia desde antes do matrimônio e hoje não conseguem ser felizes sexualmente com seus cônjuges porque se acostumaram com o excesso de estímulo. Assim, aliado a problemas de desempenho sexual, elas vão perdendo o interesse nas relações reais.
Outros prejuízos estão no âmbito social. Para dar vazão ao vício, as pessoas se isolam, passam cada vez mais tempo reclusas, isso vai desencadeando quadros de depressão, ansiedade, comportamento irritadiço, e muitas pessoas acabam perdendo relacionamentos e até o emprego por conta disso.
Existem estudos que comprovam os efeitos da pornografia no corpo e na mente?
Vivemos numa sociedade hipersexualizada, que normalizou tudo o que é sexual, como a masturbação, a pornografia… E isso traz algumas dificuldades para as pesquisas. Uma delas é conseguir um grupo controle, que, nesse caso, seria um público que nunca consumiu pornografia, para ser comparado com outro grupo que a consome regularmente. Então, faltam estudos comparativos.
Mas existem pesquisas que nos permitem entender os efeitos da pornografia no cérebro, especialmente o seu potencial de causar dependência. Estudiosos comparam o seu efeito ao da cocaína, da heroína, porque as mesmas áreas cerebrais são estimuladas. Em todos esses casos há uma grande liberação de dopamina, que está relacionada ao circuito do prazer e da recompensa, e o usuário está enormemente propenso ao vício. Acontece que, quando a pessoa decide se livrar de uma droga, ela consegue limpar o seu organismo. Já no caso da pornografia, como se trata de imagens, não se conseguirá bani-las da memória.
Esses estudos também mostram a progressão do vício. Para seguir se satisfazendo, a pessoa precisa de estímulos cada vez mais intensos, então ela passa cada vez mais tempo acessando pornografia ou busca conteúdos cada vez mais pesados.
Como é possível identificar o vício em pornografia?
Esse vício tem diferentes níveis e comportamentos característicos. Um primeiro indício é a pessoa ficar irritada ao ler ou escutar alguma crítica ou comentário sobre os prejuízos da pornografia. Outro sinal é ela ter medo de que as pessoas descubram os seus acessos e sentir-se desconfortável caso isso aconteça, porque ela reconhece que existem prejuízos sociais nesse hábito. Também, quando ela já acorda pensando nisso, imaginando em qual momento do dia irá acessar pornografia, e começa a arquitetar o momento de ficar a sós para isso. Em níveis mais graves do vício, a pessoa já prefere a pornografia à relação real, porque se acostumou a esses estímulos, ou, mesmo após a relação sexual, ela sente a necessidade de consumir pornografia para se sentir completamente satisfeita.
Se a pessoa identifica em si mesma um destes sintomas, significa que ela já tem algum grau de dependência. Entender o conceito de vício é muito importante porque, se analisamos bem, todos nós, em algum momento, tivemos contato com pornografia, mas isso não significa que todos estamos viciados nela.
É possível se livrar do vício em pornografia?
Sim. Como qualquer outro vício, a “desintoxicação” é um processo lento e difícil, mas totalmente possível.
Quais são os passos a seguir para deixar esse vício?
Reconhecê-lo é o primeiro passo. E [acima] eu já listei os sintomas do vício. Só podemos transformar algo em nós quando reconhecemos a necessidade de mudança.
Outro passo é saber identificar os gatilhos mentais que levam ao consumo da pornografia. Pode ser a frustração, estresse, raiva, rejeição… Situações com as quais a pessoa não sabe lidar, então vai em busca de algo que substitua essa sensação ruim por prazer. Então é preciso mapear esses gatilhos.
Ela também deve substituir o hábito por outras atividades prazerosas, como a atividade física, a leitura de um livro… A pessoa pode pensar: “o que eu gostava de fazer que acabei substituindo pela pornografia?” E retomar isso.
Outro passo: compartilhar a situação com alguém de confiança. Quando outra pessoa sabe da fraqueza, ela pode ser um apoio no processo de cura. Juntas, podem desenvolver estratégias para evitar os gatilhos e as situações propícias à prática. É importante lembrar que essa pessoa será apenas um apoio, e nunca a responsável pela libertação do vício.
Em muitos casos, será necessária ajuda profissional, como a de um psicólogo. Também existem órgãos e ministérios de apoio, como o perfil no Instagram @omalqueeunaoquero. Essas comunidades estão cheias de pessoas que também lutam contra o vício, e podem compartilhar experiências e estratégias. É importante sentir que não se está sozinho nessa batalha.
Por fim, um ponto muito importante é que não se deve tentar “desmamar” da pornografia. Por exemplo: se a pessoa passa 10 horas do dia consumindo pornografia, agora passará 8, depois 6…; é necessária uma ruptura abrupta. As pastas secretas onde ela guarda os conteúdos, os sites em que acessa, os grupos em que recebe e compartilha esse tipo de conteúdo, tudo isso deve ser banido definitivamente.
Você fala muito sobre o propósito de Deus para a sexualidade humana. Qual seria esse propósito e por que a pornografia não se encaixa nele?
Deus idealizou o sexo para a reprodução, mas também para o prazer. Mas não um prazer solitário, ou que machuque, ou que prejudique a percepção de um sobre o outro. Deus pensou no sexo a dois, com prazer mútuo, respeito, cumplicidade, união e intimidade emocional. Na pornografia a gente percebe o contrário disso; percebe egoísmo, isolamento, vício, prazer estritamente físico, humilhação, infidelidade, culpa, objetificação do outro e a ideia de um prazer fácil, inclusive vindo de coisas bizarras que podem prejudicar o corpo e a saúde. Então, a pornografia é uma total distorção do ideal divino. E é isso que Satanás sempre faz: deturpa algo que foi um presente de Deus para nós.