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Mania de pequeneza

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Saiba como vencer o sentimento que causa desequilíbrio emocional e bloqueia uma visão realista da existência

É impossível corrigir o rumo da vida sem antes olhar no espelho e encarar bem a pessoa que está lá. Ao fazermos isso, por vezes somos confrontados com o desafio de mudar. No entanto, toda mudança profunda, quer de crença, quer de atitude ou de comportamento, gera desconforto e ansiedade. Quando nos sentimos pequenos e incapazes, isso fica ainda mais sério, pois tende a nos fazer ver a realidade de maneira distorcida ou incompleta. Mudar é fácil apenas para quem não consegue notar a diferença óbvia entre uma cirurgia e uma maquiagem ou entre um processo curativo verdadeiro e um mero esparadrapo colorido. Deixar de fumar requer esforço. Abandonar o vício do jogo e da bebida também. Vencer a maledicência, nem fale! Aprender a confiar nas pessoas, ser acolhedor e cortês, perder o hábito de falar palavrão, dentre outros… quem quer que tenha tentado qualquer dessas coisas sabe: envolve uma feroz batalha interior. Eis o dilema! É como se, ao mesmo tempo, desejássemos voar bem alto, mas sem tirar os pés do chão. Não dá.

Nesse processo, alguns desistem. Não suportam a pressão que vem de dentro de si mesmos ou, às vezes, a que é feita pelas pessoas ao redor, devido às suas expectativas e desejos. Perseverar, resistir, lutar sem esmorecer são obra não do acaso, mas da aprendizagem e da atitude certas, junto àquilo que alguns chamam de resiliência, ou seja, a capacidade de se recompor depois do choque e do maltrato, sem mágoas nem amargura, restando apenas as cicatrizes, não mais a dor. Isso tem a ver com flexibilidade de mente, presença de espírito, autocontrole emocional, esperança no futuro, bom humor, generosidade, fé e, também, com um sentimento equilibrado de autoestima, ou seja, a sensação saudável de ser alguém, o firme reconhecimento de seu próprio valor. Na ausência dessas qualidades, tudo fica muito mais complicado.

É talvez por falta de resiliência que alguns convivem com os sintomas recorrentes da síndrome do impostor. Esse fenômeno se manifesta normalmente em pessoas bem-sucedidas, acostumadas a atingir seus objetivos e a ter um bom desempenho naquilo a que se propõem, mas propensas a sentir uma culpa existencial acima do normal. É o pai exemplar que se sente culpado por não ser ainda melhor. Trata-se da mulher bonita e capaz, mas dependente de elogios que confirmem o que ela já sabe, que validem sua identidade. É também o caso do estudante nota dez, que apesar disso teme que alguém descubra que ele é “uma farsa”. Assim como há farsantes que jamais admitiriam ser o que são, há também pessoas de todo tipo que, graças à sua defeituosa bússola emocional, criam em sua mente realidades que não existem ou que não concordam, nem de longe, com a visão consensual da maioria. Carecem de objetividade ao se autoavaliar e, por isso, sua balança viciada sempre lhes devolve o troco a menos. Em seu interior, elas sentem constantemente que estão no vermelho, em dívida. Trapaceiam e jogam contra si mesmas, praticam a autossabotagem e o autoengano, não agem com justiça quando são elas que estão no banco dos réus. Na vida, dão mais do que levam; plantam mais do que colhem. São batalhadoras, aguerridas e às vezes generosas com os outros, mas não sabem acolher a si mesmas.

É possível que tenha sido assim com Mefibosete, o último herdeiro legítimo do trono de Saul. Desconfiado e vacilante, ele se considerava indigno de sentar-se à mesa do palácio com o rei Davi, alguém que não lhe inspirava confiança, apesar de todas as evidências do contrário. Mefibosete se sentia um impostor no palácio onde tinha passado parte de sua infância e onde agora o tratavam como um príncipe, filho do rei (2Sm 9:6-8). Algo parecido ocorreu com vários dentre os espias que foram mandados por Moisés a Canaã, a terra prometida. Eles voltaram de lá com um relato ultrapressimista do que tinham visto. Disseram que lá só havia gigantes e que, à vista dos habitantes do lugar, eles eram pequeninos e insignificantes como gafanhotos (Nm 13:31-33).

O apóstolo Paulo, escrevendo aos cristãos em Roma, deixou um conselho sábio e intrigante, capaz de resolver muitos conflitos de consciência: “Por isso, pela graça que me foi dada digo a todos vocês: Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, ao contrário, tenha um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus lhe concedeu” (Rm 12:3, NVI). Note que não se trata apenas de emoção e sentimento, mas também de fé, de sintonia com a vontade de Deus. Quanto mais desenvolvida for a nossa fé, mais equilíbrio e paz o Senhor nos dará, para acalmar nossa tempestade interior. Não cairemos no extremo da exaltação própria nem no da subserviência automática (1Pe 5:6, At 16:34-37; Jo 18:19-23). Teremos a segurança interior, a maturidade e a serenidade que Jesus tinha e não dependeremos tanto nem das opiniões alheias, nem de nossos próprios sentimentos flutuantes, para estar de bem com a vida (Jo 5:41).

(…) “Se não vos sentis satisfeitos e alegres, não faleis dos vossos sentimentos. Não anuvieis a vida dos outros. […] Em vez de pensar em vossos desânimos, pensai na força de que podeis dispor em nome de Cristo. Que vossa imaginação se fixe nas coisas invisíveis. Que os pensamentos se dirijam para as evidências do grande amor de Deus por vós. A fé pode sofrer a prova, vencer a tentação, suportar o insucesso” (Mente, Caráter e Personalidade, v. 2, 1996, p. 758). Em outras palavras, força, atitude, resiliência!

No caso dos que se sentem farsantes, sem o serem realmente, será necessário cultivar e fortalecer um sentimento de honra, de dignidade (dada por Deus), para poder alcançar um conceito equilibrado de si. Será preciso entender de uma vez por todas que “o maior dos pecadores” não é um título honorífico, mas apenas uma referência àquela atitude de humildade válida unicamente ao nos olharmos no espelho de Deus, não no nosso.

Equipe Biblia.com.br
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JÚLIO LEAL é pastor e doutor em Educação.

SAIBA +

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